REALIDADE VIRTUAL - A CONVERSIBILIDADE DOS SIGNOS EM CAPITAL E PODER POLÍTICO 1 Euclides André Mance IFIL, ALEP-UFPr Nas últimas décadas, face às modificações introduzidas pelas novas tecnologias, aprofundam-se vários questionamentos acerca da operatividade dos conceitos de valor de uso e valor de troca, emergentes na economia política clássica no século XIX e que foram desenvolvidos -- não sem polêmicas -- no interior do pensamento marxista. De outra parte, o uso das expressões lingüísticas, e portanto de signos, foi retomado na segunda metade de nosso século como elemento de definição dos sentidos de tais expressões a partir de teorias dos jogos de linguagem. A explicitação de uma gramática elucidadora das normas seguidas no uso da linguagem cotidiana em seus diversos jogos, aparecia como uma das principais contribuições que filosofia poderia trazer à sociedade. Se considerarmos, ainda, que nenhuma linguagem pode se expressar em nível puramente simbólico, indicial ou icônico -- mas em combinação variada desses elementos -- e que também signos não-lingüísticos ganham sentidos pelos seus usos, empregos ou aplicações sob um conjunto de regras flexíveis, teremos então que ampliar a investigação não apenas sobre os jogos de linguagem mas sobre o conjunto dos jogos semióticos. Ora, dada a interação entre a realidade objetiva e a realidade virtual, com o signo se transformando em mercadoria e mediando a modelização das subjetividades e, portanto, a sua interação com a realidade concreta, parece pertinente colocarmos em questão o valor de uso e de troca nesses dois âmbitos -- realidade objetiva e realidade virtual -- e, especialmente, a interação entre ambos. Em síntese, neste pequeno ensaio pretendemos desenvolver apenas um breve exercício de reflexão sobre : 1) a conversibilidade dos signos em capital mediante a determinação de duas propriedades suas ao âmbito da sociedade capitalista: a) o valor de uso, que tanto pode ser objetivo -- no caso de um software, por exemplo -- como virtual -- no caso do status adquirido pela posse de um objeto sobrecodificado por um determinado signo --; valor esse de uso virtual que pode ser produzido através das linguagens modelizantes da mídia; b) a conversibilidade dos signos em capitais e vice-versa pela mediação do valor de troca dos signos, tanto no mercado efetivo quanto no mercado virtual que se interpenetram e se condicionam; 2) a utilização política da modelização das subjetividades com vistas a construir hegemonias, induzindo decisões políticas e produzindo uma compreensão fantasiosa da realidade efetiva. Trataremos, para a análise dessas questões, os seguintes fenômenos: a) como o sentido construído a um signo poderá se transformar em valor de troca econômica e em capital, b) como a realidade virtual estabelecida tanto pelo planejamento urbano quanto pela propaganda imobiliária, altera o valor efetivo de imóveis, c) como o discurso jurídico que opera sobre a realidade objetiva a sobrecodifica -- em especial a propriedade privada -- desde a realidade virtual do direito, d) a relação entre especulação, capital objetivo e capital virtual, e) como a Unidade Real Valor utilizada em 1994 como instrumento econômico -- um produto semiótico concebido como unidade de valor de troca na transição do Cruzeiro Real para o Real -- ganhou operatividade política quando promoveu a inversão entre a realidade objetiva e realidade virtual, f) e, ainda, como a construção de imaginários pela mídia e o agenciamento de subjetividades modelizadas por suas linguagens alteram opções políticas do eleitorado. Este trabalho é, portanto, um exercício de reflexão, um breve ensaio, e não a apresentação sumária de uma teoria que pretenda resolver o conjunto dos problemas abordados. 1. Realidade Virtual e Realidade Objetiva Para efeitos deste texto, distinguiremos realidade virtual e realidade efetiva. Esta, por sua vez, tanto pode ser objetiva quanto subjetiva. Tais expressões serão explicadas nesta seção. Trataremos inicialmente dos diversos empregos da expressão "realidade virtual" e em seguida da noção com a qual a utilizamos neste texto. O termo realidade virtual possui um sentido contemporâneo que advém de seu uso na análise da interação da subjetividade com processos que se desenvolvem ao nível cibernético 2. Com a sofisticação da computação gráfica e da interação do operador com o programa, a informática cria ambientes virtuais que parecem reais. Da interação do homem com tais ambientes resulta a realidade virtual, em que a atuação do sujeito modifica o ambiente, como se o que ocorresse nesse ambiente virtual realmente existisse, embora seja apenas a construção de uma realidade inexistente 3. Assim, entende-se por ambiente virtual "uma computação gráfica interativa, gerada por computador, normalmente tridimensional, que produz a ilusão de se estar presente dentro de uma realidade artificial" 4. No campo da informática a realidade virtual é definida como " uma forma de interface homem-computador que se baseia na formação de imagens espaciais e na ilusão de estar presente dentro de um ambiente gerado por computador"5. Em sentido um pouco mais amplo que este, conforme David Zeltzer, " ... não devemos perder de vista o fato de que cada vez que abrimos um livro, ou vamos ao cinema, ou simplesmente fechamos nossos olhos e sonhamos acordados, podemos entrar em realidade virtual. Durante milênios, artistas, músicos, escritores e contadores de histórias buscaram envolver nossos sentidos e imaginação em mundos que não tinham qualquer base física ". 6 Ao que parece para Zeltzer quando mergulhamos em uma construção semiótica que desloca nossa atenção consciente da realidade objetiva para o mundo dos significados e sensibilidades produzidos por tais construções semióticas, transitamos para a realidade virtual. Esse mundo dos significados resulta de um processo que envolve uma forte dimensão estética, ao ponto que signos e sensibilidades se interpenetram ao nível do imaginário construído. Na relação estética, conforme Edgar Morin, existe uma dupla consciência: " O leitor de romance ou o espectador de filme entra num universo imaginário que, de fato, passa a ter vida para ele, mas ao mesmo tempo, por maior que seja a participação, ele sabe que lê um romance ou vê um filme" 7. Conforme o autor, contudo, nos campos da magia ou religião " o imaginário é percebido como tão real, até mesmo mais real do que o real" 8; o imaginário é " o infinito jorro virtual que acompanha o que é atual, isto é, singular, limitado e finito no tempo e no espaço" 9; ele dá uma fisionomia aos nossos desejos, aspirações, necessidades, angústias e temores. Ampliando ainda mais a noção de realidade virtual, -- distinguindo-a da noção cibernética de ambiente virtual10 -- por ela entendemos, neste ensaio, um conjunto de signos articulados, coerentemente ou não, que se referem a realidades efetivas ou imaginárias e que sobrecodificam as demais significações e sentidos evocados pela presença de objetos, circunstâncias ou processos objetivos ou subjetivos, estabelecendo-se como nível primário de sentido, isto é, sendo tomados como se fossem a realidade efetiva. Tal sobrecodificação significativa é também a territorialização de uma disposição afetiva do sujeito face ao elemento sobrecodificado. A realidade virtual é construída pela conferência de sentidos e significações que se articulam em um imaginário, produzindo a ilusão de se estar presente em uma realidade que efetivamente não existe, comportando-se afetivamente o sujeito perante tais realidades como se elas existissem. O imaginário é percebido como concreto11 De outra parte, consideramos como realidade efetiva não apenas o que é externo à subjetividade mas também todos os processos subjetivos em seus planos biológico e psicológico, excetuando-se apenas os fenômenos de significação e construção sentidos. Efetivo não tem aqui apenas o sentido dialético de algo que tenha sido produzido pelo homem, mediado na práxis. Efetivo, neste ensaio, significa tudo o que há, seja tanto no plano objetivo quanto subjetivo, com a devida excessão apontada. Expliquemos melhor esses âmbitos e suas interações utilizando alguns exemplos até o final desta seção. Uma cerveja ou um analgésico são realidade objetiva quando materialmente existentes. Os rótulos que envolvem os frascos que os contém são objetivos, como também o são os sinais gráficos linguísticos e não-lingüísticos que os compõem. Contudo, os sentidos de tais produtos são subjetivos, pois somente são constituídos na subjetividade dos que, com tais produtos, se deparam. Uma informação presente na subjetividade de um homem, possui um estatuto de realidade subjetiva. Morto o homem, extingue-se a informação. Quando a mesma informação é escrita, gravada, os significantes que a expressam possuem um estatuto de realidade objetiva. Mortos os homens elas permanecem. Quando uma informação é comunicada durante uma conversa, enquanto ela vai sendo expressa, ela possui estatuto de realidade objetiva frente a diversos sujeitos que podem apreendê-la. Cessada a comunicação ela possui um estatuto de realidade subjetiva, na subjetividade dos diversos sujeitos que dela se apropriaram. A cerveja possui um estatuto objetivo, tanto quanto seu rótulo e significantes nele impressos. Contudo, o sentido da cerveja é subjetivo, dependendo do complexo de necessidades, desejos e significações às quais ela é articulada pela subjetividade de quem a considera. Tal complexo de necessidades, desejos, significações e sentidos pode ser produzido "socialmente" e reproduzido pela tradição cultural de um povo, como também pode ser produzido por um pequeno grupo que possui o poder de massificar determinados sentidos articulados a tais produtos, através de linguagens que modelizando os signos já anteriormente a eles estabelecidos -- reterritorializando sua significatividade -- hegemonizam um modo de interpretação dominante. Assim, a subjetividade que considera a cerveja pode fazê-lo a partir das referências estabelecidas sob o código construído pela propaganda, relacionando-se com o produto objetivo a partir dos sentidos subjetivos que lhe foram modelizados. Surge, assim, a realidade virtual, isto é, uma espécie de conjunto de sentidos e significações que é mediatizado ao sujeito pelo objeto, em que cada objeto evoca alguma coisa para fora dele próprio, evocação essa produzida por um modo de semiotização dominante. Ao plano da realidade objetiva fumar cigarros acalma a ansiedade do vício, gera prazer e provoca doenças pulmonares e cardíacas. Ao plano da realidade virtual cada marca de cigarros possui uma identidade que evoca características exógenas ao cigarro, como "levar vantagem em tudo", "ter algo em comum" com alguém singular, etc. A propaganda que estabelece o jogo de semiotização dominante é objetiva quando veiculada. Aquela informação torna-se realidade subjetiva para quem a apreendeu. Mas somente se transforma em componente da realidade virtual quando o sujeito se relaciona com o objeto buscando nele a mediação para a realização de algo imaginário que está para além do objeto, mas que é evocado por ele, como a companhia de belas jovens para quem usa calças USTOP, ou a atração de mulheres para quem usa desodorante Avanço, alcançar "emoção prá valer" tomando Coca-Cola, viver uma família feliz para que consome margarina Doriana, Qualy, etc. A constituição da realidade virtual é possível porque a interação do sujeito com os signos -- sejam gestos, palavras faladas e escritas, logomarcas de produtos ou partidos, objetos fetichizados, enfim, os mais variados símbolos, ícones e índices -- é simultaneamente estética e cognitiva12 Por estética entendemos a dimensão dos perceptos e afetos, isto é, da percepção sensível dos signos e das disposições afetivas que suscita, dos sentimentos que evoca13 . Desta interação com os signos pode resultar um conceito ou noção em função do processo comunicativo do significado transmitido. Mas tal conceito ou noção integra -- em maior ou menor medida -- aspectos perceptuais e afetivos envolvidos 14. Assim, a interação com o signo da Coca-Cola -- com suas letras estilizadas, com o formato de sua garrafa e com todo o conjunto de significados e sentidos associados -- é, simultaneamente, cognitiva e estética. Os afetos são modelizados pela mídia nas campanhas de marketing, esteticamente bem produzidas, que provocam no consumidor a sensação de incorporar algo mais que apenas um produto -- como se fosse um ritual antropofágico em que se incorpora as virtudes associadas àquilo que é consumido -- ou a estetização da vida, isto é, a sensação de penetrar no mundo dos significados -- como o garoto da peça publicitária dos refrigerantes Brahma que entra no enredo da propaganda que assiste na TV ou que entra em um filme para consumir o desejado produto e que depois salta novamente para o que seria a realidade efetiva, respectivamente, a sala ou o cinema. A rigor, desde o dia em que Marcel Duchamp levou um urinol ao museu, para ser exposto em meio às obras de arte, percebeu-se que qualquer objeto pode ser apreciado sob o ponto de vista estético e que era possível arrebentar os contornos entre a arte e a realidade cotidiana 15. Por outro lado, a estetização da realidade cotidiana efetiva pelas semióticas místico-religiosas -- modelizando afetividades -- possibilitam criar disposições subjetivas frente a acontecimentos, objetos e ritos que recebem sentidos mediadores para chegar-se à realidade transcendente em que se tem virtualmente contato com o divino e o demoníaco. Já no caso da publicidade, a transformação de objetos em signos pela semiose produzida através da mídia transforma, por exemplo, um carro em signo, do qual tem-se uma percepção estética no "museu de arte" do consumo que é a vida: interage-se com ele de maneira cognitiva e estética. Os perceptos nos evocam os afetos -- modelizados ou não sob os códigos publicitários e que são integrados ou não ao conceito ou noção -- quando ouvimos alguém dizer: "eu tenho um B.M.W." ou "eu tenho um Fusca". 2. A Realidade Virtual se interpenetra com a Realidade Objetiva Realidade virtual e objetiva se interpenetram. A realidade objetiva situa-se no plano efetivo, ao passo que a realidade virtual é o plano do imaginário articulado ao inconsciente agenciado semioticamente por inúmeras linguagens modelizadoras. A realidade objetiva está na condição de nível primário quando os sentidos e significados são apenas uma mediação na interação do sujeito com a realidade efetiva. A realidade virtual, por sua vez, somente ocorre quando está na condição de nível primário, quando a realidade objetiva é apenas uma mediação significante para a interação do sujeito com os significados codificados pelos jogos semióticos dominantes que modelizam sua subjetividade, constituindo as referências de seu imaginário16 . 3. Valor de Uso e Troca dos Signos Contemporaneamente os produtos comerciais são primordialmente signos. Possuem uma identidade que é construída a partir de pesquisas de imaginários sociais e articulada às aspirações de segmentos de consumidores; isto ocorre para que os produtos apareçam subliminarmente, ou até manifestamente, como portando a capacidade de atender a tais anseios subjetivos17. Na aquisição de um produto, muitas vezes, este fator subliminar ou manifesto é o elemento determinante da opção do comprador. Objetivamente compra-se a margarina Doriana. Subjetivamente deseja-se viver em uma família feliz. Se tal marca de margarina fosse associada a uma família cujos membros se agridem com rancor e violência, provocando dor e sofrimento em cada refeição, o produto não teria boa aceitação pelos consumidores. Quando o desejo da família feliz é um dos componentes determinantes na aquisição de tal marca de margarina, o comprador se move em uma realidade virtual, adquirindo um signo articulado em um conjunto de linguagens publicitárias, linguagens essas que possibilitaram a modelização da subjetividade necessitante e desejosa do próprio consumidor18 . Em muitos casos a posse do signo confere um destaque social como o tênis de determinada marca, o carro do ano, a residência em um certo condomínio, sendo que outros produtos similares ofereceriam as mesmas condições de uso, excetuando- se o reconhecimento social e a satisfação psicológica que somente são possíveis pela posse ou usufruto do signo19 Dessa forma o signo que possui um valor de uso semiótico, possibilitando a interação entre subjetividades através de linguagens, possui também um valor de troca econômico ao nível da realidade efetiva, na medida em que possibilita, ao nível da realidade virtual, realizar coisas que outros signos não possibilitam. Assim, realidade objetiva e realidade virtual se interpenetram, sendo elementos de determinação de valor de troca do produto. Neste caso, o signo que possibilita a realização do reconhecimento social e da satisfação subjetiva é a posse do signo que sobrecodifica o produto, que é o seu suporte objetivo. A posse de um outro produto não sobrecodificado por tal signo não possibilitaria o reconhecimento social e a satisfação subjetiva, mesmo que objetivamente seja similar em todas as características ao outro produto. Por outro lado, é impossível, nestes casos, a posse do signo sem a posse do produto sobrecodificado por ele. Ora, a produção de tal signo e a modelização das subjetividades para desejá-lo requer trabalho e gastos. Assim, o valor de uso virtual agregado ao produto pelo trabalho -- construindo-lhe uma identidade modelizando os códigos de busca de satisfação dos anseios subjetivos do consumidor -- conferirá ao produto um novo valor de troca, pagando o consumidor tanto pelo seu valor de uso objetivo quanto pela realidade virtual que foi produzida e na qual busca encontrar a satisfação de seu desejo pela posse do signo 20. O valor econômico de troca dessa realidade virtual tenderá ser tanto maior, quanto maior for a mobilização daqueles que dispõem de recursos e que encontram em tal produto a satisfação subjetiva de seus anseios. Há casos, entretanto, que a posse ou fruição do signo pode independer do meio que o suporta. Informações que independem dos meios passam a ter, cada vez mais, um papel decisivo na complexa organização da vida contemporânea. Um programa simples de computação, por exemplo, tanto pode ser adquirido na forma de um disquete, como pode ser adquirido em um livro e introduzido via teclado linha a linha, como pode ser copiado via modem diretamente de um outro computador conectado através de uma linha telefônica. A fruição de um filme tanto pode ser realizada no cinema em que ocorre a projeção luminosa de uma fita, como em casa, seja através de um vídeo-cassete, seja captando, através de um cabo, uma tele-difusão. Nestes casos os signos são eles próprios o objeto de troca independentemente do objeto que os contém ou os veicula. Embora a informação tenha valor de troca, a troca, nesse caso, não se realiza como permuta. Assim, embora ao vender um programa de computação o seu proprietário receba um pagamento por ele, por outro lado ele ainda continua de posse da informação que vendeu, podendo vendê-la inúmeras vezes, da mesma forma que se podem fazer inumeráveis cópias de qualquer arquivo21 . Cabe distinguir, contudo, que este conjunto de informações que é o produto objetivo, pode também ser sobrecodificado pelo mesmo processo de criação virtual de uma identidade que lhe seria peculiar. O nome que ele recebe já é um signo que não interfere no próprio funcionamento objetivo do produto. A publicidade de softwares, por exemplo, cria uma realidade virtual que muitas vezes faz uma pequena mudança objetiva parecer a última revolução tecnológica que traria consigo um enorme aumento de eficiência e produtividade frente aos concorrentes, sendo que na realidade efetiva os produtos concorrentes possuem, às vezes, até melhor desempenho. Assim, paga-se não pelo disquete, pelo livro, ou pelo tempo de transmissão, mas tanto pela informação que se torna disponível ao uso, quanto pela realidade virtual que foi construída fazendo de todo o conjunto de informações um signo de reconhecimento social ou de satisfação psicológica, como o status da posse dos diversos games de computador para adolescentes das classes médias... O valor econômico de troca da informação, como tal, independe do meio ou veículo que a suporta. Quanto vale uma informação antecipada aos operadores das Bolsas de Valores sobre as medidas que o Governo tomará no plano econômico? Quanto vale a um especulador imobiliário a informação sobre futuras mudanças do Plano Diretor Urbano da cidade em que atua ou sobre a aprovação de projetos de infra-estrutura que sobrevalorizarão certa áreas urbanas ? Que dizer do valor econômico de uso e troca de informações resultantes da espionagem industrial, envolvendo informações biotecnológicas ou das diversas tecnologias de ponta ? Em todos os casos, a venda da informação não implica necessariamente a sua alienação pelo vendedor, que mesmo vendendo-a pode continuar a possui-la. Mas como avaliar se certas informações correspondem aos estados de coisas aos quais se reportam ? Em que medida as informações sobre determinada empresa que levam à queda de suas ações na Bolsa de Valores não são divulgadas sob um jogo de um conjunto de acionistas que desejam ampliar sua participação acionária, ampliando seu poder de decisão sobre a mesma empresa ? Até que ponto falsas informações não são plantadas pela própria empresa com a finalidade de ter valorizadas as suas ações ? Que valor tem a informação do espião que inadvertidamente possui como informante um agente de contra-espionagem daquela empresa ou país? Qualquer informação que corresponda ou não à realidade efetiva terá valor de troca desde que alguém, por algum motivo -- assentado na realidade efetiva ou virtual -- se disponha a pagar por ela. Ora se o sentido dos signos deve ser investigado nos seus usos, claro está que sob a modelização do Capitalismo Mundial Integrado, os usos dos signos ao âmbito econômico tem como finalidade fundamental a produção de um valor de troca22 que possa ser acumulado em equivalentes semióticos -- como moedas, títulos, ações, marcas registradas, etc -- que tenham conversibilidade para quaisquer outras formas de capitais e de poder . 4. Espaço Urbano e Realidade Virtual Nas duas seções do item 4 abordaremos a conversibilidade dos signos em capital pela mediação do Plano Diretor Urbano, leis de uso do solo e pela produção de um imaginário coletivo sobre a cidade. Para o esclarecimento de tais fenômenos tomaremos como exemplo principal a cidade de Curitiba onde esse fenômeno de produção de realidade virtual sobre a cidade é fortemente acentuado. A produção de objetos semióticos e um forte trabalho de city-marketing alteraram, nos últimos anos, o imaginário da população de Curitiba sobre a cidade23 . 4.1 O Valor de Troca da Realidade Virtual Urbana e a Modelização do Imaginário Social O espaço e serviços urbanos possuem valor de uso e valor de troca, sendo também sobrecodificáveis virtualmente. A transformação do valor de uso de uma área urbana se realiza não apenas por mudanças objetivas nas suas condições de infra-estrutura, disposição de equipamentos públicos, atendimento a serviços, etc. Tais aspectos referem-se à realidade objetiva. Contudo as alterações da significação social de áreas urbanas, alteram o seu valor de uso virtual. A posse de imóveis em certas áreas da cidade confere um status mais elevado ao seu proprietário. Sobre tais áreas é aplicado o signo "nobre" que expressaria as condições excelentes para habitação. Contudo, a posse de outra área com condições similares de habitação não confere o mesmo signo ao seu detentor. Como quem adquire o imóvel não compra apenas o valor objetivo de uso, mas o signo virtual de destaque social, isto é, o valor de uso virtual, ele também pagará por este aspecto virtual do produto que adquire. Assim, em Curitiba, por exemplo, criou-se um signo nobre para especificar uma região da cidade -- o Champagnat --; afirmar que um imóvel fica no Campo Comprido é aplicar-lhe o signo do bairro dos conjuntos populares, da gente pobre; por outro lado, afirmar que o imóvel fica no Champagnat é associá-lo à área nobre Batel/Seminário. Contudo, o Champagnat não é bairro, nem distrito, nem regional e não existe no Plano Diretor Urbano. Ninguém sabe ao certo onde começa ou termina, quais os seus contornos. Mas estando no Champagnat o imóvel tem um signo de prestígio 24 . Assim, imóveis que estão localizados no Campo Comprido, são capturados sob o signo do Champagnat para fins de publicidade imobiliária. A mesma lógica da produção da realidade virtual ocorreu com a divisão do bairro Capanema que possui uma das maiores favelas da cidade. Ali próximo à favela, no mesmo bairro haviam residências de classe média. Uma área intermediária - - antes que fosse completamente tomada em uma ocupação -- foi transformada no Jardim Botânico, construído objetivamente pela prefeitura, mas também virtualmente, como signo da Cidade Ecológica. Os moradores da camada média reivindicaram a mudança do nome de sua região de Capanema para Jardim Botânico. Ao mesmo tempo que o jardim botânico valorizou o preço daquela área, o signo que se construiu em torno do bairro Jardim Botânico como que o desvencilhou de sua realidade de estar próximo de uma das maiores favelas de Curitiba. Sob o imaginário modelizado do prestígio não é a mesma situação morar no Jardim Botânico ou na Vila Capanema. Contudo, as casas de classe média e os barracos continuam situados no mesmo lugar onde estavam, nas mesmas condições anteriores, separados agora por uma área de lazer com uma estufa de acrílico, um casarão de madeira e jardins floridos. Um trabalho de paisagismo feito na avenida que corta as duas áreas tenta esconder a realidade objetiva da barroca abaixo que está fora do signo Jardim Botânico da realidade virtual da Capital Ecológica. A variação do valor de troca de um imóvel, portanto, é determinada por inúmeros fatores, entre eles a mudança de seu valor de uso objetivo e virtual: seja, no primeiro caso, pela mudança de atendimento em infra-estrutura, equipamentos e serviços, pela transformação do imóvel em sua topografia ou construção, seja, no segundo caso, pela mudança da significação social conferida àquele espaço que pode se articular a algum mecanismo especulativo. Contudo seu valor de troca sofre pressões também pela variação de mercados de aplicação de capitais aos quais está interconectado. Muitas vezes a manutenção de uma realidade virtual que sobrecodifica valiosamente uma cidade exige muitos gastos objetivos, a fim de manter o turismo ou atrair indústrias, por exemplo. Cada cidade constrói um signo sob seu nome, cujos sentidos são produzidos e evocados socialmente. O Rio de Janeiro como maravilhosa cidade foi um signo construído a partir dos que estabeleceram ali a capital da República, que literalmente demoliram áreas da cidade para reconstrui- las sob um projeto urbanístico que imaginariamente antecipava o futuro e o progresso que a República traria ao Brasil.25 As campanhas publicitárias veiculadas em 1994 sobre o Rio de Janeiro -- com pessoas passeando tranquilamente pela cidade, divertindo-se à noite, etc -- visavam relativizar o signo da violência, construindo um imaginário favorável ao turismo. De outra parte, um estudo comparativo de diversos tele-jornais evidenciava que algumas emissoras, especialmente a TV Globo, sobrevalorizavam a veiculação de informações sobre a violência no Rio de Janeiro. Em ambos os casos tem-se a construção de realidades virtuais que estabelecem significações distintas a uma mesma cidade26 . Em torno de Curitiba, por exemplo, construiu-se um signo de Cidade Ecológica, de Primeiro Mundo. Os signos das pecas publicitárias que aparecem na TV ao mesmo tempo em que constróem o imaginário da população, dão vazão à aspiração de cada qual poder considerar-se em melhores condições que os demais brasileiros. Contudo, contrastando com a realidade virtual está a realidade objetiva: milhares de famílias que moram em favelas 27; crianças brincando no esgoto a céu aberto ou transitando pelas ruas cheirando cola e praticando pequenos furtos28; os rios da cidade que estão mortos ou sendo anti-ecologicamente retificados29; enquanto o prefeito gasta recursos para pintar de verdes os postes da Rua das Flores ou executa obras de paisagismo para esconder favelas que ladeiam a avenida que leva ao aeroporto. Objetivamente Curitiba não é uma cidade que promova um desenvolvimento urbano seguindo princípios ecologicamente corretos e nem muito menos uma "Cidade de Primeiro Mundo". Entretanto, a população da classe média e das elites curitibanas que não estão colocadas na situação das populações marginalizadas pelas políticas públicas transitam da realidade objetiva à realidade virtual agenciada através dos diversos signos produzidos pela administração e que conformam o seu imaginário. Quando um curitibano lernista entra em um tubo do Linha-Direta30, objetivamente está entrando em um tubo de acrílico que lhe dá acesso a um ônibus em que viaja prensado entre outros passageiros como em qualquer outro ônibus que também tem que parar nos semáforos, com a única vantagem de não ter pontos próximos uns dos outros e um motor mais potente. Contudo, o tubo de acrílico é um dos signos que no imaginário daquela pessoa está vinculado à realidade do Primeiro Mundo. Assim a pessoa ao entrar no significante -- o tubo -- é como que envolvida pelo seu significado estabelecido no imaginário : o Primeiro Mundo. Se o nível primário fosse a realidade objetiva tratar- se-ia de adentrar em uma plataforma elevada que dá acesso a um ônibus. Como nesse caso o nível primário é o da realidade virtual, a operatividade efetiva do objeto, que o torna significante sob os jogos semióticos, é sobrecodificada como a realização da realidade virtual de viver-se em uma cidade do Primeiro Mundo. O trajeto tem assim dois níveis de realidade: o objetivo que é o deslocamento de um tubo a outro e o nível virtual de realização da fantasia de viver em uma cidade de primeiro mundo. 4.2 O Valor de Troca da Realidade Objetiva Urbana sobrecodificada pela Realidade Virtual do Plano Diretor Urbano. Entre as representações sígnicas da cidade que alteram o seu valor de troca, a principal é o Plano Diretor Urbano, em meio às demais legislações , como a de uso do solo, por exemplo. O planejamento urbano na maioria das cidades é o processo de manipulação de uma realidade virtual. Manejando- se formalmente mapas, considerando-se dados estatísticos e inúmeros vetores, saem das pranchetas projetos que definem como a realidade urbana deve ser. Zonas residenciais, agrícolas, comerciais, de serviços, de preservação ambiental ou histórica, zonas industriais, etc, são estabelecidas aplicando a cada território um signo. Taxas de ocupação do solo, impermeabilização, coeficientes de aproveitamento, gabaritos construtivos, sistema viário, circulação, localização de equipamentos públicos e tantos outros detalhes técnicos são especificados. A cidade real deve ordenar-se de acordo com os signos e códigos da cidade projetada. Mas como tal processo de planejamento -- que, em geral, não é democratizado31 -- possibilita por mediações virtuais a modificação de usos objetivos de espaços e serviços urbanos, ocorre que da manipulação dos signos, como se fosse um passe de mágica, o capital de alguns se multiplica. Assim, se uma Zona Residencial possuía um coeficiente 1 de aproveitamento (ZR1) que possibilitava ao proprietário construir 100 m² em seu terreno, valendo o metro quadrado US$ 500, valia seu terreno US$ 50.000 . Contudo o prefeito muda um signo no Plano Diretor, transformando a realidade virtual e o que era ZR1 passa a ser ZR5. Multiplicou-se assim o coeficiente de aproveitamento por cinco. Se antes era possível construi 100 m² quadrados, agora é possível construir 500 m², valendo o terreno agora, senão US$ 250.000, pelo menos uns US$ 150.000 para as construtoras que desejam fazer ali um pequeno prédio. Normalmente a transformação da realidade virtual -- da qual o Plano Diretor Urbano é o suporte objetivo -- vem acompanhada de argumentos articulados em um grande discurso técnico que a legitima, escondendo inúmeros interesses particulares. Efetivamente os planos diretores da maioria das cidades nada mais são do que o resultado performativo de uma linguagem particular -- do planejamento urbano -- modelizada sob os códigos do valor de uso e troca do capital como sistema semiótico dominante32 Contudo, como no mesmo caso da modelização do imaginário dominante, aqui também a realidade objetiva se conforma apenas parcialmente à realidade virtual. As populações pobres moram em áreas de risco, em barracos de latas, plásticos e tábuas, crianças vivem pelas ruas, pessoas passam fome... Contudo, medidas enérgicas são tomadas para expulsar legiões de pobres -- que aparecem, ninguém sabe de onde -- assim que um primeiro grupo se arrisca a ocupar um terreno baldio; jatos d'água são jogados nos mendigos que dormem pelas calçadas de certas áreas da cidade ecológica, para que saiam do centro urbano, a fim de parecer mais real a realidade virtual. Das pranchetas advém os programas para crianças de rua, que se constituem em signos de publicidade para manter a vigência do imaginário ao plano da realidade virtual, mas incapazes de transformar a realidade objetiva, não considerando que as crianças não se comportam tão facilmente quanto os signos nas pranchetas. No signo que constroem das crianças de rua, não cabe a elas a condição de sujeitos. Tudo se passa como se a inauguração veiculada pela mídia de um Centro de Educação Integral ou um Farol do Saber -- conforme as determinações do planejamento urbano -- fosse a concretização da realidade virtual, Escola de Primeiro Mundo e democratização do saber, mas que esconde de fato a realidade objetiva da evasão escolar...33 Apresenta-se o Câmbio Verde -- troca de lixo reciclável por alimentos -- como um marco do programa integrado de planejamento ecológico que articula educação ambiental com política de abastecimento, sendo que objetivamente muitas crianças deixam de estudar para ir catar lixo em valetas, aterros, lixões -- expondo-se a doenças infecciosas -- , para trocá- lo no Câmbio Verde por alimentos, ajudando a família a ter alguma coisa a mais para comer. Assim, é o valor de troca objetivado no preço das terras, dos alimentos, do material escolar, de tudo o que é imprescindível à vida, bem como a existência de sua corporalidade necessitante e desejosa de seres humanos -- que não se reduzem a um vetor do planejamento virtual dos espaços e dos serviços urbanos -- , que obrigam a esses mesmos seres humanos reais e empobrecidos a viverem objetivamente fora dos parâmetros do planejamento urbano oficial, embora, sob muitos aspectos, gostariam de cumpri- los, se isto fosse possível. 5. O Discurso Jurídico e a Realidade Virtual A alteração virtual de um plano diretor somente altera objetivamente o valor de uso do espaço urbano porque enquanto objeto sígnico o plano diretor é sobrecodificado pela realidade virtual do Direito. Sendo sua aprovação um ato lingüístico performativo, tal ato deve respeitar as condições requeridas pelo jogo semiótico para a sua felicidade34, cumprindo todas as normas jurídicas impostas ao seu procedimento. O Direito assegura a imposição de um conjunto de leis e procedimentos a serem respeitados na convivência social. Do mesmo modo que o Plano Diretor cria uma realidade virtual que sobrecodifica a cidade, o Direito cria uma realidade virtual que sobrecodifica as condutas sociais -- inclusive as apropriadas ao estabelecimento de um plano diretor urbano -- e certos tipos de relações entre os homens e os objetos, como sendo a promoção da justiça. Entre muitas outras ações, as de uso e troca de propriedades são também reguladas pelo direito. A maioria absoluta dos juizes, ressalvando-se algumas poucas exceções, sustentam seus juízos sobre questões que envolvam uso e troca considerando a realidade virtual jurídica. Assim, se um conjunto de famílias sem-terra ocupa uma área urbana anteriormente desocupada, servida por infra- estrutura, cujo proprietário é dono de muitas outras áreas e a tem como capital especulativo, normalmente o direito legal do proprietário trocar o imóvel quando bem lhe aprouver prevalecerá sobre a destinação daquela área ao uso social objetivo daquele conjunto de famílias pobres. Segundo o discurso jurídico, todos são iguais perante a lei e portanto a lei deve garantir o direito de propriedade de todos. Na realidade objetiva milhões de brasileiros não possuem nenhum terreno. Portanto a lei não pode defender o direito de propriedade de quem não tem propriedade. Mas quando tiverem uma propriedade fundiária, a justiça defenderá o seu direito, desde que a propriedade tenha sido adquirida de acordo com a lei. Assim, a lei garante um direito virtual a todos, mas o nega objetivamente a milhões na medida que estabelece um mecanismo virtual de acesso à realização do direito que o inviabiliza objetivamente. Que dizer de milhões de pessoas que objetivamente vivem fora dos padrões virtualmente estabelecidos pelo Plano Diretor Urbano ou desrespeitando o código civil de propriedade ? O código jurídico permite ao prefeito mudar um signo no Plano Diretor e promover a apropriação privada pelo proprietário do imóvel de um valor objetivo de uso e troca produzido socialmente, especialmente pelos investimentos públicos, mas não permite que pobres se apropriem socialmente de um valor de uso ocioso. Ocorre que no primeiro caso a realidade objetiva é submetida à realidade virtual do planejamento urbano e do direito, articulados ao signo da propriedade privada modelizada pelas semióticas do capital, ao passo que no segundo caso a realidade objetiva da ocupação do imóvel torna-se um signo de subversão, modelizada sob a semiótica do uso social. Entre comprar alimentos para os filhos e pagar aluguel, imperativos objetivos obrigam à ocupação do vazio urbano que estava destinado à especulação. A vida objetiva do povo pobre, com sua corporalidade necessitante, exige a desconformidade com os padrões da virtualidade constituída. Mas o juiz concederá reintegração de posse e as forças policiais executarão a ação do despejo espancando homens, mulheres e crianças. Sob os jogos semióticos vigentes que modelizam a subjetividade dos soldados, eles apenas cumprem ordens que visam assegurar o que é de direito, expulsando "invasores", "aproveitadores do bem alheio", que teriam sido mobilizados por algum "agitador". E o direito, modelizado pelas semióticas do capital, é que a propriedade do capital seja assegurada acima mesmo das possibilidades objetivas das pessoas sobreviverem.35 Do mesmo modo que é possível haver vários planos diretores para uma mesma cidade, é possível haver conjuntos diferenciados de leis para a convivência entre as pessoas de um país. Do mesmo modo que um plano diretor pode impor uma norma impossível de sobrecodificar a realidade objetiva, o direito pode impor normas que são impossíveis de serem cumpridas pelos sujeitos que objetivamente existem em uma dada sociedade com todas as suas contingências históricas. Em uma sociedade capitalista, contudo, a realidade virtual do Direito é construída a partir dos jogos semióticos modelizados sob os imperativos do capital em contraste com a pressão social pela realização de seus anseios36 . 6. Realidade Virtual: Economia e Política Nas três seções deste item abordaremos os três últimos temas apontados na introdução. O capital como realidade concreta se realiza ao nível objetivo e também virtual. Produz objetos e signos, modeliza subjetividades para realizar seus ciclos de concentração e de expansão. Na primeira seção, partindo da análise dos movimentos especulativos trataremos do conceito de capital fictício e imaginário em Marx e apresentaremos a noção de capital virtual que utilizaremos na crítica a Robert Kurz quanto a sua análise sobre o colapso da modernização. Na segunda seção analisaremos fenômenos de realidade virtual na economia brasileira, em especial, nas primeiras fases do Plano Real, travadas com jogos semióticos envolvendo a URV. Na terceira seção analisaremos o agenciamento de opções políticas -- no período da campanha eleitoral à presidência da República em 1989 -- através de jogos semióticos envolvendo novelas e noticiários da Rede Globo. 6.1. Capital Objetivo e Capital Virtual Face aos Movimentos Especulativos Pós-Modernos Desde os anos 70 percebe-se no mundo um excedente de capital monetário em busca desesperada de uma aplicação lucrativa. Inicialmente este capital se transformou em créditos aos diversos países perdedores na concorrência comercial, financiando suas dívidas e seu comércio. Nos anos 80, por força desse capital excedente cada vez maior, desenvolveu-se uma onda global de especulação com imóveis e ações que teve por centro primário o Japão repercutindo em seguida nos EUA e Grã-Bretanha, atingindo por fim, em níveis diferenciados, todo o mundo ocidental. Os ganhos que não podiam ser reinvestidos na produção, em razão dos mercados consumidores mundiais cada vez mais restritos, foram aplicados por empresas fornecedoras na compra de imóveis provocando uma explosão dos preços jamais vista na história. Esses preços, contudo, nada tinham a ver com o valor objetivo de terrenos ou prédios, nem com a sua forma de aproveitamento para instalação de fábricas, escritórios, residências para locação ou estacionamentos. Uma vez que a especulação alimenta a especulação a compra de imóveis era um investimento cada vez mais lucrativo em função do contínuo aumento dos preços. Conforme Robert Kurz, "dos imóveis, a especulação alastrou-se aos mercados de ações. A cotação das ações foi forçada a alturas incríveis, em parte com ganhos procedentes do boom desvairado dos imóveis. Dentro de poucos anos, o rendimento real (reduzido praticamente a zero no Japão), na forma de dividendos, perdeu quase toda a importância frente ao preço e, com isso, ao valor aparente e astronômico das ações, que ultrapassava de longe seu valor nominal."37 Processos de especulação semelhantes desenvolveram-se posteriormente nos EUA e Grã- Bretanha, insuflados pelo capital especulativo Japonês. Esse movimento de multiplicação do capital especulativo só é possível em razão da manutenção de realidades virtuais, uma vez que não há alterações de valor de uso objetivo dos imóveis, nem alterações nos dividendos efetivos das ações.38 Marx já havia analisado no século XIX esse movimento, ainda que em fase embrionária, análise essa que apenas recentemente tem sido desenvolvida 39 . Quando o preço do conjunto das ações excede ao valor do capital investido nas operações da empresa, o que excede a esse valor chama-se Capital Fictício. O caráter fictício desse capital revela-se ao final de um processo especulativo longo ou curto. Enquanto este processo se desdobra, conforme Kurz, o capital fictício " ... cria nos participantes do mercado a ilusão de render muito mais lucro do que o capital realmente produtivo. Precisamente por isso, o capital fictício pode atuar sobre a produção real de bens e induzir processos de produção materiais, cuja invalidade se revela apenas posteriormente, no colapso inevitável da especulação." 40 Contudo, os lucros do capital especulativo -- que são fictícios quanto a reprodução social do capital objetivo -- podem ter uma realização de aparência produtiva, quando possibilitam a um especulador, por exemplo, comprar um carro do ano com os ganhos que são para ele efetivamente reais. O mesmo acontece quando consideramos movimentos especulativos internacionais, não sendo mais possível separar nitidamente o que seria a acumulação especulativa e a suposta acumulação real. No Livro Terceiro do Capital, Marx distingue os níveis fictício e imaginário do capital de seus níveis efetivo e real, fazendo referência a capital fictício, capital imaginário, capital efetivo e capital real. Façamos aqui uma breve recuperação de sua análise para posteriormente distinguirmos o capital fictício ou imaginário do capital virtual. Afirma o autor que com o desenvolvimento do comércio no modo capitalista de produção, aperfeiçoa-se a mediação entre credor e devedor no sistema de crédito. Aqui vende-se a mercadoria sem entretanto trocá-la por dinheiro, mas "... por promessa escrita de pagamento em determinado prazo. Para maior brevidade -- destaca Marx -- classificaremos todas as promessas de pagamento na categoria geral de letras. Até o dia do vencimento e pagamento circulam por sua vez como meio de pagamento, e constituem dinheiro genuíno do comércio." 41. Conforme Marx todas as letras se constituem a partir de uma promessa. Em meio a uma citação de J. W. Gilbart, Marx afirma e sublinha que "... I promisse to pay é a fórmula usual dos bilhetes de banco ingleses..." 42. Esse fenômeno de que uma promessa resulte em um papel que circule como meio de pagamento é, para Marx, um processo impressionante que gera um capital fictício, imaginário. Considerando tal questão Marx aborda no campo da economia um fenômeno ao qual Austin chegou pelo estudo da linguagem: que palavras possam criar realidades. Conforme a primeira fase da elaboração de Austin sobre os enunciados estes podem ser divididos em constativos e performativos, sendo estes últimos compromissivos, criando coisas com palavras. Se como afirmamos anteriormente, certos signos possuem valor de uso lingüístico mas também econômico -- devendo seu estudo articular a filosofia da linguagem e a economia política a partir de uma teoria dos jogos de poder -- podemos entender este "valor fictício" investigado por Marx como resultado de um jogo semiótico. Neste caso, "I promisse to pay ..." é um proferimento performativo que cria algo, um compromisso de pagamento em data futura, determinada previamente antes do ato da promessa. Conforme Marx, essas letras acabam circulando como dinheiro de crédito e resultando em um valor circulante imaginário 43. Tais papéis são fonte de movimentos especulativos circulando como fictício capital financeiro: "Os fundos de reserva dos bancos, em países de produção capitalista desenvolvida, expressam sempre em média a magnitude do dinheiro entesourado, e parte desse tesouro consiste por sua vez em papéis, meros bilhetes representativos de ouro, mas que não possuem valor próprio. A maior parte do capital bancário portanto é puramente fictícia e consiste em créditos (letras), títulos governamentais (que representam capital despendido) e ações (que dão direito a rendimento futuro). Não devemos esquecer que é puramente fictício o valor monetário do capital que esses títulos guardados nos cofres dos banqueiros representam -- mesmo quando ... constituem títulos de propriedade sobre capital real, como as ações --, e que é regulado por leis que diferem das relativas ao valor do capital efetivo representado pelo menos em parte por tais títulos . E quando esses títulos representam, em vez de capital, mero direito a rendimento uniforme, esse direito se expressa em capital-dinheiro- fictício que varia sem cessar " 44 Capital de empréstimo 45 , fundos públicos46 , títulos -- sobre minas e ferrovias 47, por exemplo -- e outras letras tornam-se riqueza financeira imaginária 48 . Toda " essa riqueza financeira imaginária constitui parte considerável da fortuna monetária dos particulares e também do capital dos banqueiros..." 49 O conjunto do capital fictício, imaginário interpenetrado em transações com capitais reais e efetivos promove profundas deformações na percepção do capital real nos centros financeiros: "tudo aqui está às avessas, pois nesse mundo de papel, nenhures aparecem o preço real e seus elementos efetivos, vendo-se apenas barras, dinheiro sonante, bilhetes, letras, valores mobiliários."50. Nos períodos de crise real do capitalismo a situação se torna mais complexa em razão desse capital fictício. A emissão de "meros papagaios" ou "negócios de mercadorias destinados apenas a fabricar letras", fazem subsistir "a aparência tranqüila de negócio sólido e de retornos fáceis de dinheiro... Por isso, sempre às vésperas do craque, os negócios aparentam quase solidez extrema." 51 Quebrando-se a " confiança na fluidez do processo de reprodução"52, emerge o pânico que leva o homem de negócio a buscar ativos reais mesmo perdendo alguns percentuais de seus papéis, chegando- se ao "salve-se quem puder" descrito por Samuel Gurney, empresário, citado por Marx: "Se está sob a influência do pânico, [ ao empresário ] não lhe importa ganhar ou perder. Procura pôr-se a salvo, e o resto do mundo que se arranje."53 . Esse movimento em cadeia leva à fase culminante do craque. Frente a esse mundo de papel Marx conceitua o capital efetivo, real. O capital real é o capital produtivo e o capital-mercadoria 54. Assim, para Marx, "... a acumulação real dos capitalistas industriais em regra se efetua por meio do acréscimo dos elementos do próprio capital reprodutivo." 55. Abstraindo todas as especulações e negócios fictícios, Marx analisa as razões das crises reais do capitalismo: " A razão última de todas as crises reais continua sendo sempre a pobreza e a limitação do consumo das massas em face do impulso da produção capitalista: o de desenvolver as forças produtivas como se tivessem apenas por limite o poder absoluto de consumo da sociedade."56. Atualmente, os excedentes das exportações das economias fortes que permanecem financiando as importações das economias deficitárias em suas balanças comerciais, transformam-se mediatamente em créditos que alimentam direta ou indiretamente a estrutura global especulativa. Tais excedentes de exportação assumem o caráter de complexos fictícios. Conforme Kurz, quando o movimento de busca de realização desse capital fictício passar a ocorrer haverá, pela inexistência de uma correspondência objetiva de ativos reais ao seu valor, um movimento de desvalorização de papéis em escala planetária, atingindo o valor das moedas, levando a crise das dívidas internacionais a um golpe fantástico na economia mundial, pois " o colapso definitivo da especulação global causará também a ruína do sistema internacional de crédito".57. A análise que Kurz desdobra de Marx considera a crise do sistema mundial produtor de mercadorias abordando dois aspectos fundamentais: o primeiro que atinge o capital real -- o aumento da pobreza e a limitação de consumo das massas pela exclusão do processo produtivo de grande parte da força de trabalho em razão da inovações tecnológicas e de gerenciamento; e o segundo que atinge o capital fictício, também conhecido atualmente por capital volátil -- a crise financeira das dívidas que se tornam impagáveis com capitais especulativos fictícios que se evaporarão no movimento de busca de sua realização efetiva quando da iminência de prejuízos ao possuidor dos papéis. O problema da análise que Kurz desdobra de Marx é que ele considera o Capitalismo Mundial Integrado pós-moderno sob a lógica da reprodução do capitalismo moderno. No primeiro aspecto que destacamos, a análise de Marx retomada por Kurz é correta, verificando-se a sua vigência pelos movimentos de constituição dos mega-mercados -- tentativa das empresas disputarem sem entraves o consumo daqueles que tem poder aquisitivo. No segundo aspecto entretanto, Kurz não percebe que o capitalismo mundial vigente, pós-moderno, não apenas produz mercadorias, mas também subjetividades, e que modelizando-as semioticamente criam-se necessidades virtuais que para serem satisfeitas necessitam de signos que possuem valor de uso virtual 58. Na globalidade da atual economia o movimento especulativo não pode ser compreendido com a categoria de capital fictício, pois ele é virtualmente real. É preciso subsumir a categoria de capital fictício sob a categoria de Capital Virtual. Assim, desfazemos o erro da análise pois a correspondência do capital total, objetivo e virtual não deve ser feita considerando-se apenas o capital produtivo e o capital mercadoria-objetivo, mas também o virtual59 - todo o conjunto dos signos que possuem valor de troca e que podem ser reproduzidos infinitamente em jogos semióticos. Desta forma o que sustentará a continuidade do movimento especulativo é a capacidade de produzir realidades virtuais que continuem movendo as subjetividades ao consumo dos signos. Este excedente que não tem como ser reinvestido na produção dado a restrição dos mercados, corre na disputa por aquisição ou produção de objetos-sígnicos cujo valor é estabelecido ao plano de realidades virtuais. Assim, por exemplo, em alguns leilões que se realizaram nos últimos anos certos objetos que pertenceram a celebridades, peças que objetivamente valeriam muito pouco, foram arrematados por fabulosas fortunas; rabiscos feitos em guardanapos por pintores renomados, peças íntimas de artistas, canetas de estadistas e uma infinidade de objetos que efetivamente não teriam muito valor -- até mesmo fragmentos do muro de Berlim -- são comercializados -- e algumas peças por consideráveis fortunas -- em razão de serem signos capturados sob uma realidade virtual, produzida a partir de jogos semióticos. A captura de obras de arte, passe de jogadores de futebol e outros elementos sob certos jogos semióticos, possibilitam a criação virtual de objetos sobrevalorizados onde o capital virtual é aplicado e que possibilitam o lucro por satisfazerem necessidades virtuais que foram produzidas nos que podem consumir tais signos: pagar a assinatura da TV a cabo que por sua vez paga ao clubes pela transmissão das partidas, em que atuam tais jogadores que são os "craques"; pagar o pacote turístico que inclui a visita ao museu onde estão expostos os objetos pessoais dos artistas famosos que sempre foram vistos nos filmes; ou ao outro museu onde inclusive podem ser vistos os últimos rabiscos de um artista famoso -- projeto de sua última tela que ficou inacabada, porque o mestre veio a falecer antes de completá-la -- mas que seria uma verdadeira revolução em seu trabalho, porque abandonava a fase azul para trabalhar com variações de verde. O valor conferido aos objetos acima mencionados não é fictício, mas virtual, porque não se pagou pelo contato, fruição ou posse do objeto, mas pela fruição, contato ou posse do que evoca 60. Se nada ocorrer que estrague objetivamente esses objetos-sígnicos -- como um furacão que destrua o museu deteriorando as peças da exposição (alterando a tonalidade do verde da tela61 ), ou provocando que as peças íntimas do artista sejam levadas pela enxurrada que lhes causa furos, rasgos e desbotamentos, etc -- sua depreciação somente se dará em função de uma nova sobrecodificação de seus signos ao nível da realidade virtual: novas informações que alterem o valor conferido àquele artista ou estadista, dúvidas quanto a originalidade das peças, etc. O mais importante, entretanto, é que a velocidade de circulação das informações e que esses excedentes investidos em produção de realidade virtual são dois elementos que dificultariam a quebra catastrófica do mundo dos papéis. A qualquer sinal de tendência depreciativa que provoque o colapso do sistema há um conjunto de dispositivos adotados pelos grandes agentes nos setores oligopolizados que atuam em todos os mercados do mundo impedindo que a depreciação dos papéis inviabilize a continuidade da reprodução do capital objetivo e virtual. Dado o montante de investimentos que certos grupos fazem em ações de seus concorrentes para participar também dos seus lucros ou associações que fazem para disputar certos mercados, visando menor concorrência e maior concentração de capital62