A CONTRIBUIÇÃO FILOSÓFICA DOS MOVIMENTOS CULTURAIS :

Um resgate do pensamento de Antonio Gramsci para refletirmos acerca das relações entre filosofia, política, educação e cultura (1)

Giselle Moura Schnorr

A "Declaração de Paris para a Filosofia"(2) ao afirmar a atividade filosófica enquanto atividade conceitual historicamente envolvida com a realidade e que desde sua origem procura pensar o homem e sua realidade concreta nos instiga a pensarmos nossa contribuição, a partir da atividade filosófica, para a construção da liberdade no contexto de consolidação da democracia, da cidadania e dos direitos humanos.

Aceitando este desafio, de pensarmos a filosofia enquanto reflexão conceitual rigorosa e histórica, ou seja, profundamente comprometida em problematizar o sentido da vida humana em todas as dimensões, proponho um resgate da contribuição filosófica de Antonio Gramsci, pensador italiano, que em sua obra problematiza as relações entre filosofia, política, educação e cultura na perspectiva de construção de uma nova sociedade, que no contexto de Gramsci, é a sociedade socialista.

A interpretação que Gramsci faz da história italiana supõe o seu esforço em explicitar a dialética materialista, em oposição ao idealismo crociano e às concepções mecanicistas do marxismo.

Marcando o debate acerca do marxismo neste século, Gramsci, desenvolve categorias como: hegemonia, bloco-histórico, reforma intelectual e moral, revolução passiva, nacional-popular, entre outras, na perspectiva de (re)- construção do movimento socialista italiano combatendo as interpretações idealistas do marxismo, representada pelo economicismo de Benedetto Croce(3) e pelo materialismo vulgar, mecanicista, como o de Bukharin.(4)

Problematizando a relação entre a história da Itália e a filosofia, Gramsci desenvolve uma concepção de filosofia como essencialmente criadora de concepções de mundo, a medida que está envolvida com a cultura e a história de uma época.

A partir de algumas leituras e interpretando, ainda que de forma introdutória, algumas categorias deste autor abordarei:

Num primeiro momento a concepção gramsciana de filosofia no sentido de que esta concepção, recupera a filosofia enquanto atividade intelectual que pensa o homem e sua realidade concreta corroborando com a concepção de filosofia como prática conceitual, rigorosa em favor da liberdade proposta na "Declaração de Paris para a Filosofia", organizada pela UNESCO, nos dias 15 e 16 de fevereiro de 1995.

Numa segunda etapa proponho a compreensão e análise do conceito gramsciano de cultura e educação a medida que se articula com a noção de hegemonia, fornecendo instrumentos para a construção de um projeto político transformador, fundamentado no compromisso de que a construção de uma sociedade melhor passa, também, pela construção de uma nova cultura, de um novo senso comum, reflexões que podem contribuir para a prática dos movimentos sociais-populares comprometidos com a transformação política e social, além de fornecer elementos para o fazer filosófico a partir desta prática.

 

Uma Concepção de Filosofia:

Em "Problemas de Filosofia e de História"(5) Gramsci, elabora as seguintes questões: O que é a Filosofia? Qual o significado das filosofias dos filósofos de cada época histórica?

Quanto a primeira questão Gramsci dirá que a filosofia é concepção de mundo que elaborada historicamente torna-se norma de vida, atua na vida prática, sendo assimilada pelo senso comum. Assim em certa medida todos os homens são filósofos a medida que atuam numa determinada prática e nesta existe uma concepção de mundo, que não é ocasional, mas historicamente e culturalmente construída. A atividade filosófica individual caracteriza-se pela elaboração conceitual, atividade do pensamento; a filosofia no senso comum, apresenta características difusas e dispersas de um pensamento genérico de uma certa época em um certo ambiente popular. Toda filosofia tende a se tornar senso comum, ainda que de maneira restrita (dos intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que, ligada a vida prática e implícita nela, se torne um senso comum renovado pela coerência e pelo rigor das filosofias individuais. E isso só pode ser construído no contato cultural entre os intelectuais e o povo.

Quanto a história da filosofia, a história das filosofias dos filósofos, Gramsci, dirá que esta é a história das tentativas e das iniciativas ideológicas de uma determinada classe de pessoas para mudar as concepções de mundo existentes em todas as épocas e portanto para mudar a atividade prática em seu conjunto.

Interpretando a Filosofia enquanto concepção crítica e coerente do mundo que, também, se insere no senso comum, aponta para a necessidade de um estudo aprofundado das concepções de mundo das massas, dos grupos de dirigentes (intelectuais) e a ligação destes vários complexos culturais e a filosofia elaborada pelos filósofos.

Os elementos filosóficos dividem-se em diferentes graus: há a filosofia dos filósofos propriamente ditos (especialistas em filosofia, que se dedicam a essa atividade acadêmica e profissionalmente); há as concepções dos grupos intelectuais, dirigentes, propagadores da cultura filosófica e há as concepções das grandes massas que se formam a partir das diferentes combinações entre esses elementos.

Gramsci resgatando o marxismo a partir da história da Itália, articula o trabalho filosófico como luta cultural que visa transformar a consciência popular, onde o valor histórico de uma filosofia pode se "calculado" a partir da eficácia "prática" que conquistou.

Uma filosofia não pode ser entendida como simples fato intelectual, mas é inseparável da ação política, ou para conduzir à aceitação e sistematização das relações de poder ou para recriar e redefinir a própria ação política.

Neste sentido "A filosofia de uma época histórica, portanto, não é senão a ‘história’ desta mesma época, não é senão a massa de variações que o grupo dirigente conseguiu determinar na realidade precedente: neste sentido, história e filosofia são inseparáveis, formam um ‘bloco’ ".(6)

Para Gramsci toda filosofia em maior ou menor grau torna-se concepção de mundo, e, neste sentido, o posicionamento por parte de alguns intelectuais que concebem a filosofia, apenas, como atividade ordenadora ou receptiva, onde a realidade é em si e para si, contribuiu para fortalecer um senso comum fragmentado, no qual, a filosofia não possui vínculo com a realidade, o que gera em modo a-histórico de compreensão da vida, da filosofia e das relações de poder.

Para contrapor-se a essa visão de filosofia receptiva e ordenadora, que leva ao solipcismo, o que não passa de uma forma de idealismo, Gramsci propõe uma filosofia criativa, uma filosofia que se historicizou, que possue em sua base a atividade prática ou política. Enfim, o marxismo para Gramsci possui os elementos filosóficos para ser acolhido pelo senso comum reelaborando este senso comum, tornando-se cultura, bom-senso, concepção coerente de mundo.

Uma filosofia da práxis, tal como Gramsci denomina o marxismo, só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação do modo de pensar precedente e elaborando uma nova cultura. Antes de tudo, a filosofia comprometida com a práxis, parte da crítica do senso comum e isto após basear-se no senso comum para demonstrar que todos são filósofos e que não se trata de introduzir uma nova descoberta científica, uma nova verdade universalmente válida, mas trata-se de inovar e tornar crítica e coerente a atividade já existente. Esta relação entre as filosofias histórica e conceitualmente elaboradas e o senso comum é assegurada pela política.

O problema fundamental destas filosofias que se tornam concepções de mundo, transformando-se em movimento cultural que produziu uma atividade prática é conservar a unidade ideológica de todo bloco social. Essa unidade só pode ser construída a partir da organicidade de pensamento e pela solidez deste pensamento com a cultura, que significa dizer, organicidade entre a teoria e a prática, entre os intelectuais enquanto intelectuais organicamente comprometidos com as massas, tornando coerentes os princípios e os problemas que estas massas colocam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco social e cultural.

A filosofia que se historicizou a partir da atividade prática ou política, coloca sua racionalidade em teste, se sua elaboração for acolhida pelas massas torna-se cultura "bom senso", concepção de mundo coerente. A filosofia como concepção de mundo, coloca o trabalho filosófico como luta cultural que, sem dogmatismos, mas com rigor e criatividade transforma a mentalidade popular.

"O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e original do que a descoberta por parte de um ‘gênio filosófico’, de uma verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais."(7)

Essa concepção gramsciana de filosofia ajuda-nos a repensar a condição do filósofo hoje e a recuperar sua função de participante nas lutas da sociedade brasileira. A filosofia como mera atividade de representação, de reiteração ou de divulgação do pensamento "universal", "puro", "desinteressado", não tem razão de ser.

A maioria dos "filósofos" no Brasil assumem uma atitude intelectualista, dedicados à erudição, dificultam a elaboração de um pensamento rigoroso, radical, voltado para o conjunto da situação social vivida, suas reflexões são abstrações da vida e da história. Esse tipo de atitude diante da filosofia constrõe uma concepção alienante da própria filosofia, "neutra", "abstrata", que bem da verdade serve como instrumento de dominação, negando a própria filosofia que não se reduz a explicitações de conceitos de maneira abstrata e a-histórica.

Toda filosofia que recusa seu caráter histórico, relativo, polêmico, transitório, para se fechar na especulação estéril, no saber comandado e submisso, serve apenas para manter a hegemonia cultural burguesa.

Estas são algumas questões que apontam para a necessidade de refletirmos sobre as condições do filosofar enquanto atividade crítica questionadora. A meu ver Gramsci coloca um novo conceito de filosofia que permite redefinir a função do filósofo no contexto social como participante na elaboração da história e da concretização da liberdade.

Para Gramsci a filosofia sempre possuiu uma dimensão política e educativa, sempre teve uma prática pedagógica por excelência, que é um meio para a construção da hegemonia.

 

Gramsci a política e a cultura

O desafio dos movimentos sociais populares, que, em síntese, lutam pela efetivação de um projeto político transformador, que se baseia na construção e exercício da cidadania, é essencialmente um desafio político e cultural.

Desafio que se coloca a uma prática bastante concreta: a ação desenvolvida pelos diversos movimentos sociais populares que se organizam na sociedade civil reivindicando saúde, moradia, saneamento, emprego e na esfera cultural opondo-se a todo tipo de discriminação (étnica, racial, sexual, etc.). Ação que constantemente se depara com a necessidade de sistematização de suas experiências, de reflexão acerca de sua eficácia, avaliando estratégias de luta, de articulação, de formação política e cultural.

Apesar da especificidade de cada movimento social-popular, consideramos que todos com maior ou menor enfoque atuam, também, numa dimensão cultural, a medida que propõem novos valores opondo-se à uma ética individualista, de discriminação, segregação e exclusão.

Em que medida a atividade filosófica pode contribuir para a práxis destes movimentos? Qual a contribuição destes movimentos para repensarmos a filosofia que "fazemos"? São questões que se articulam e que não se esgotam nesta fala.

Procurarei resgatar a contribuição de Gramsci para essas questões, explicitando uma atividade filosófica envolvida com a realidade histórica e cultural.

A filosofia da práxis, aponta o caráter histórico de todas as filosofias e se apresenta como a "teoria das contradições" existentes na história e na sociedade, assume "todo o passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a Filosofia Alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo e o historicismo: em suma, o que está na base de toda concepção moderna de vida e é a crítica e a superação, é o coroamento de todo este movimento de reforma intelectual e moral, dialetizando no contraste entre cultura-popular e alta-cultura"(8), é a concepção de mundo das classes dominadas, expressão das suas lutas, dos seus sonhos, dos avanços e recuos na conquista da hegemonia, é a manifestação "de uma nova cultura em gestação, que se desenvolverá com o desenvolver-se das relações sociais" como uma atitude "crítica e polêmica, jamais dogmática"(9), mas realista, que considera "as razões do adversário" que pode ser todo o pensamento passado.

Considero fundamental esta interpretação feita por Gramsci do marxismo, no sentido de que está criticando as interpretações dogmáticas, doutrinárias, mecanicistas e economicistas da obra de Marx, a riqueza da interpretação gramsciana do marxismo acentua-se precisamente em sua noção de hegemonia e sua relação com a cultura, explicitando que as relações de poder recorrem à formação cultural para se consolidarem. A categoria cultura é um elemento fundamental na construção de um projeto de sociedade, a formação cultural da classe trabalhadora é condição para a realização de uma contra-hegemonia.

No período de militância política, entre 1916 à 1920, Gramsci escreve artigos em jornais voltados para a classe trabalhadora, a coletânea destes artigos, são os chamados textos de juventude. Nestes artigos Gramsci polemiza com companheiros do movimento socialista (PSI, dos Conselhos de Fábrica e dos jornais) os encaminhamentos e estratégias da luta política.

Nestes artigos aponta para a importância da questão cultural na construção de um projeto hegemônico do ponto de vista dos dominados.

Em "A Questão Meridional"(10), texto inacabado, escrito em 1926, Gramsci faz uma profunda análise das relações entre o norte e o sul da Itália, conseqüência do modo como foi conduzido o processo de unificação italiana.

O Estado italiano passou por um processo de unificação tardio, tendo fundamentado-se num Estado já existente, o Piemonte, que tinha como característica a força e a centralização.

A unificação efetiva-se com o apoio da burguesia regional, classe desunida, com interesses corporativos, que direciona a unificação de forma conservadora, favorecendo apenas aos interesses dos grupos burgueses que buscavam fortalecer-se econômica e politicamente.

Com a unificação o Estado se estabelece a partir do modelo da região setentrional, modelo que é imposto à toda a Itália sem considerar as grandes diferenças existentes entre as regiões norte e sul. O objetivo de introduzir a Itália no processo de "modernização" capitalista, sem considerar as diversidades culturais e econômicas entre essas regiões, trouxe conseqüências desastrosas para o sul devido a política centralizadora que só valorizava a região norte, industrializada.

O norte da Itália tinha as condições necessárias para o desenvolvimento do capitalismo, da indústria. Enquanto que o sul possuía uma agricultura primitiva, no estilo feudal, o que correspondia, também, ao modo de pensar do camponês meridional.

Assim, o novo Estado italiano se fundamenta reforçando as diferenças econômicas e culturais. O sul fica subordinado aos interesses da burguesia do norte, que controlava o governo e que também produzia um discurso ideológico definindo o sul como atrasado e preguiçoso sem considerar as condições históricas do camponês.

Gramsci observa que este Estado que encaminha a unificação, se caracterizando como centralizador e despótico, reforçou a dicotomia, comum em países atrasados do ponto de vista capitalista, entre cidade e campo, entre operário e camponês e dificultou a organização partidária, os parlamentares defendiam interesses de determinados setores econômicos ou seus próprios interesses, manifestando uma política do tipo transformista, onde o discurso e a prática política se adapta as ocasiões e as vantagens que podem obter para si próprios ou para determinado grupo.

No período da primeira guerra mundial o Estado passa a regulamentar a produção e a distribuição dos bens materiais em meio a crise econômica, isso acentua as condições de exploração e a miséria principalmente no sul.

O camponês recrutado na guerra passa por uma experiência que resulta numa mudança de mentalidade, a guerra obrigou os países, que não tinham meios bélicos de oposição, a expor massas de homens aos instrumentos bélicos dos Impérios centrais. A vida na guerra produziu no camponês uma dimensão mais rica sobre a vida, a organização do Estado, sobre a história, contribuindo para uma nova psicologia no camponês.

Antes da guerra o modo de pensar do camponês é fragmentária e servil. As manifestações contra a exploração ocorria na forma de banditismo (queimadas, raptos de crianças, assaltos à prefeitura, etc.), o que não trazia conseqüências eficazes.

O camponês está, antes da guerra, à margem dos interesses econômicos e políticos, é ignorado, não é capaz de compreender sua condição e a sociedade em que vive, seu mundo se reduz a sua aldeia e a seu dialeto, não consegue organizar-se e traçar objetivos coletivamente, sua ação se reduz ao esforço individual, sua mentalidade é a do servo de gleba, "que se revolta violentamente contra os "senhores" em determinadas ocasiões, mas é incapaz de pensar por si mesmo como membro de uma coletividade."(11).

Com a trágica experiência da guerra, essa mentalidade fragmentária e servil toma outra forma, que Gramsci analisa como positiva. Com a experiência de ter que sobreviver nas trincheiras o individualismo da lugar a experiência coletiva. O Estado passa a ser percebido em sua complexidade e o próprio camponês se percebe como parte deste Estado.

A afirmação de um novo homem depois da experiência da guerra pode servir para a unificação da classe dos operários e camponeses, questão fundamental para a concretização do Estado socialista.

É neste contexto de militância política e de análise do Estado italiano que Gramsci desenvolve propostas para a organização política e cultural, através das atividades dos conselhos de fábrica e da fundação de conselhos camponeses, enquanto órgãos representativos e de formação política e educativa, que devem propiciar o amadurecimento desta consciência despertada pela guerra.

A partir desta percepção do processo histórico na Itália, abordada aqui, em alguns aspectos, Gramsci polemiza constantemente sobre a importância da formação de uma nova cultura para que se viabilize a construção do socialismo.

No artigo "Socialismo e Cultura", publicado em 1916, resgata uma determinada noção de cultura, do filósofo alemão Novalis (1772-1801) cujo sentido, na verdade se reporta à famosa sentença "Conhece-te a ti mesmo" de Sócrates.

Conhecer a si mesmo significa educar-se no sentido mais amplo, na disciplina individual, na vida, através da inserção social. Para as classes trabalhadoras italianas educar-se significa romper com os estreitos limites da democracia burguesa e criar uma nova ordem social a partir da compreensão e da crítica da ordem vigente; se as liberdades são mínimas, trata-se de criar as condições para a liberdade concreta, que se constrõe no dia-dia, no enfrentamento, no diálogo, na experiência política do debate franco e amplo, vivenciada nos movimentos operários.

Nesta perspectiva Gramsci redefine a noção de cultura:

"É necessário perder o hábito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual o homem é visto sob a forma de recipiente para encher e amontoar com dados empíricos, com fatos brutos e desconexos, que ele depois deverá arrumar no seu cérebro como nas colunas de um dicionário para poder então, em qualquer ocasião, responder aos vários estímulos do mundo externo. Esta forma de cultura é verdadeiramente nociva especialmente para o proletariado."(12)

Toda cultura que se coloca como abstrata e enciclopédica é nociva, porque cria uma situação irreal, onde o indivíduo se julga sábio e superior só porque memorizou um conjunto de informações transmitidas de modo factual e sem crítica. A memorização, supõe uma verdade em si, a-histórica, que pode ser adquirida, ordenada, guardada, criando indivíduos desajustados.

Este tipo de intelectual convencido e enciclopédico não é o mesmo que representa os ideais da burguesia em sua fase áurea e revolucionária, quando foram vividos momentos de intensa crítica e efervescência cultural. O Iluminismo foi um movimento que se estendeu por toda a Europa, formando uma "consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa, sensível em todos os seus aspectos às dores e desgraças comuns e que foi a melhor preparação para a revolta sangrenta que depois se verificou na França."(13)

O que Gramsci está nos dizendo é que a cultura é o que distingue os homens da natureza, é a intervenção inteligente e criativa na realidade, sendo criação histórica. Isso significa que a cultura não é neutra, mas foi produzida e apropriada historicamente por grupos sociais. Para as classes trabalhadoras coloca-se a necessidade de construir sua própria cultura como instrumento de emancipação política.

Uma cultura pensada não como algo cristalizado, mas como produção da própria identidade, como "organização, disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência superior, pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função na vida, os próprios direitos e os próprios deveres."(14)

A discussão de Gramsci sobre a cultura marcou o debate no PSI, com Bordiga, e Tasca, polemiza a esse respeito: Bordiga exclui a necessidade de uma preocupação com o tema, considerando a luta pelo socialismo apenas como prática política e produtiva; Tasca defende uma difusão da cultura entre os trabalhadores, mas no seu sentido tradicional. Gramsci aponta para a necessidade de construir uma nova cultura, base para uma nova ordem social.

Uma cultura que, pela organização e tomada de consciência das lutas enfrentadas no dia-dia, se traduz em novo modo de união e de solidariedade, diferente das relações vividas na sociedade capitalista: Marx em "Proletários de todo mundo, uni-vos." Refere-se a união, não só de corpos físicos, mas da comunhão de espíritos, da colaboração de pensamento, da mutua sustentação no trabalho de aperfeiçoamento individual, da educação recíproca, em oposição ao individualismo da sociedade capitalista.

Nesta perspectiva falemos um pouco da liberdade. Na sociedade burguesa os critérios de relacionamento isolam o indivíduo, concebem a liberdade de modo estreito e limitado, a ordem burguesa, hierárquica, é mantida por uma disciplina mecânica e autoritária, exclui a crítica, o compromisso e a responsabilidade do indivíduo com a coletividade; basta obedecer à lei e à ordem e deixar que a competitividade e as ambições dos pequenos grupos decidam os destinos da sociedade.

Em oposição a essa concepção de liberdade individualista, Gramsci diz que para o socialismo a liberdade é construção coletiva, com responsabilidade e disciplina, "Associar-se a um movimento significa assumir uma parte das responsabilidades dos acontecimentos que se preparam, tornar-se artífice direto desses acontecimentos"(15).

Na sociedade capitalista concebemos o conceito de disciplina como coerção, imposição de uma ordem, o conceito de disciplina utilizado por Gramsci contrapõe-se a essa disciplina coercitiva. A disciplina socialista é autônoma e espontânea, fruto da vontade concreta em construir a sua vida conforme determinados objetivos.

Assim, quanto maiores os limites impostos pela sociedade capitalista ao exercício da liberdade e da cidadania, maior o dever da classe trabalhadora de educar-se e organizar-se; a educação, a cultura, a organização, a difusão do saber e da experiência, são condições do tornar-se independente e livre.

A cultura é crítica, criação histórica, condicionada, permeada pela contradição. Por isso a luta política supõe a crítica do processo de formação da sociedade capitalista, condição para a elaboração de uma concepção de mundo coerente e unitária, a construção de uma identidade cultural é uma condição para a construção de uma sociedade socialista. Isso significa, "Conhece-se a si mesmo".

"Conhecer-se a si mesmo quer dizer ser si mesmo, quer dizer ser senhor de si mesmo, distinguir-se, sair do caos, ser um elemento da ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina em relação a um ideal. Mas não se pode conseguir isso se não se conhece também os outros, a sua história, o suceder-se dos esforços que eles fizeram para serem o que são, para criar a Civilização que criaram e que nós queremos substituir pela nossa"(16).

Conhecer-se supõe conhecer o outro, conhecer-se através do outro, da experiência histórica, conhecendo a própria história remover preconceitos, situar-se, criticar o saber cristalizado e dogmático, transpor os limites da fatalidade e da indiferença, superar o isolamento individual ao qual o capitalismo nos relega, para criar a própria personalidade, expressa em uma nova cultura e em uma nova ordem social.

No âmbito da organização política e cultural, Gramsci coloca a necessidade de se criar associações de cultura, de discutir a função da escola, da imprensa numa perspectiva da classe trabalhadora. Deve haver grupos de estudos, com os trabalhadores para enriquecer o debate político, explicitando as questões que dizem respeito a construção da sociedade socialista; consolidando uma visão crítica e superior da história e da filosofia no sentido de compreensão do mundo em que vive e luta. Durante todo o período de sua militância política Gramsci insistiu na necessidade de criar espaços culturais que permitissem integrar a atividade política e econômica à questão cultural:

"A cultura supõe discussão livre e exaustiva de todos os problemas. A democracia que se quer não poder ser construída depois da tomada de poder, mas na prática cotidiana do debate amplo dos problemas e na participação efetiva. É preciso conhecer para aderir na escolha dos caminhos a trilhar. É preciso conhecer para aderir com convicção; se esta prática não for habitual, corre-se o risco de rixas internas e ‘fenômenos de idolatria’, que são um contra-senso no movimento e fazem tornar a entrar pela janela o autoritarismo expulso pela porta".(17)

A educação da classe trabalhadora, a partir da formação política e cultural é a condição fundamental para a construção da hegemonia numa perspectiva socialista, o que Gramsci também, denomina contra-hegemonia.

A hegemonia combina dominação e direção política e cultural, sendo exercida através da coerção e do consenso. O uso da força ou do consentimento na luta hegemônica depende das relações entre sociedade política e sociedade civil.

As características de cada Estado determinam o exercício do poder hegemônico, combinando ou não o uso da força e do consenso.

No Estado capitalista moderno, onde a sociedade civil está organizada e ampliada, não é possível governar sem o consentimento e faz-se necessário a aceitação da opinião pública para que se efetivem certos encaminhamentos políticos.

O consentimento pode ser assegurado por meios ideológicos através da formação da opinião pública exercida na sociedade civil, pelos meios de comunicação, partidos, sindicatos, empresas e pelo trabalho da sociedade política no sistema judiciário, no sistema escolar e por meio da propaganda; o exercício da hegemonia une sociedade civil e sociedade política, não cabendo a esta última apenas o exercício da força.

Considero importante compreendermos a análise de Gramsci sobre o poder hegemônico, a medida que o trabalho dos movimentos sociais populares está fundamentado em um projeto político, ou seja, a construção de uma hegemonia.

Na análise do poder hegemônico Gramsci destaca o papel da sociedade civil: esta é a responsável pela formação da opinião pública criando o clima necessário para os encaminhamentos políticos dos grupos no poder; as instituições da sociedade civil possuem uma relativa autonomia e na dinâmica das relações sociais podem facilmente opor-se ao grupo dirigente. É na sociedade civil que Gramsci localiza as possibilidades de transformação do Estado, a partir do trabalho de formação cultural, com a elaboração de novas concepções de mundo e com a luta por novas relações hegemônicas. Para o Estado liberal, a dominação ideológica é a garantia da manutenção do poder político e econômico.

Na democracia liberal, modelo para o Estado capitalista avançado, o exercício do poder político, tem como uma de suas características, o discurso que reforça a ilusão de governo do povo; um discurso universalizante que, através das leis, coloca o Estado numa condição de representante de todos, acima de interesses corporativos. Esse é um caráter ideológico do Estado Liberal, mascara as contradições presentes na sociedade; pode afirmar, por exemplo, que "a educação é um direito de todos" sem, na prática, assegurar a educação para todos, ou seja, a idéia abstraída e universalizada cria expectativas nunca realizadas mas que atuam como força mistificadora.

Daí, mais uma vez ressalto, a importância política de uma formação cultural coerente e unitária, que represente uma reforma "intelectual e moral" na formação de uma vontade coletiva, onde é de fundamental importância o papel do partido político, dos intelectuais orgânicos e de todos os organismos comprometidos com a construção de uma contra hegemonia.

Gramsci coloca o marxismo como uma filosofia da classe trabalhadora que, como tal, é fundadora de uma nova cultura, organizando as massas para a conquista da hegemonia, tem uma função histórica e política expressa na unidade entre teoria e prática.

Analisando a XI Tese sobre Feuerbach segundo a qual "os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras, tratando-se agora de transformá-lo", Gramsci, coloca que esta afirmação de Marx é a negação da filosofia tida como atividade puramente teórica, contemplativa ou escolástica, e a elaboração de uma filosofia que produza uma vontade coletiva autônoma, afirmando a unidade entre teoria e prática; não como pretendeu Croce, segundo qual Marx ao afirmar a praticidade da filosofia, suplantou o filosofar em detrimento da atividade prática. É a historicidade da filosofia, mesmo as especulativas, que permite a percepção do alcance prático e os efeitos sociais que representam. Há sempre um nexo histórico entre os filósofos e a realidade histórica que os move.

A atividade do filósofo (individual) deve ser em função da unidade social, é uma função de direção política, que pressupõe uma atividade de educador-político, de crítica e reflexão.

O filósofo enquanto intelectual, é responsável pelas concepções de mundo presentes no senso comum. Gramsci aponta para a necessidade de superação da ideologia burguesa a partir de uma nova cultura, de um novo senso comum, que supere a concepção de mundo fragmentária, desagregada, contraditória, que contribui para o exercício da hegemonia pelos grupos dominantes.

"Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria de gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido"(18)

O senso comum absorve as concepções de mundo da classe dominante, veiculadas através das instituições da sociedade civil, porque não possui uma concepção própria do mundo, toma "emprestado" concepções que não representam a realidade que vive, caracterizando uma dicotomia entre o pensado e o vivido. Ao tomar como sua uma concepção de mundo que não lhe é própria, as massas deixam de desenvolver elementos de uma concepção original do mundo que, mesmo de forma embrionária e desarticulada, está presente no modo de pensar, na linguagem, nas crenças do senso comum; nesta perspectiva é fundamental na teoria gramsciana o papel dos intelectuais, dos dirigentes, na elaboração de uma concepção de mundo unitária, resgatando estes elementos originais do senso comum.

Espero que através desta interpretação de parte da obra de Gramsci tenha instigado a todos a refletir acerca da contribuição deste autor para a reflexão desta Semana Filosófica, no sentido, de que, já é chegada a hora da filosofia no Brasil ocupar seu espaço, considerando que é produção cultural e enquanto tal assume um papel político na sociedade.

O resgate deste autor nos fornece elementos para repensarmos a atividade filosófica como atividade histórica e que, como tal, só é filosofia se feita considerando a diversidade histórica.

O texto de Gramsci combate todas as formas de dogmatismo, deixando sempre questões em aberto para estimular a discussão, assim cabe a nós prosseguirmos neste diálogo.


____________________________________________

NOTAS:

1 Exposição realizada na Semana de Filosofia – Elementos para um Novo Paradigma Filosófico. Evento promovido por: CAVIF, CAFIL, FESFI, CAL-XIII, IFIL e ALEP/UFPR. Curitiba, 26 a 30 de outubro de 1998

2 UNESCO. Philosophie et Démocratie dans le Monde. Une enquête de l’UNESCO. Librairie Génerale Française, 1995, p. 13-14.

3 CROCE, Benedetto (1866-1952); filósofo, político liberal-conservador, exerceu grande influência na cultura italiana do Novecento. Como filósofo aproximou-se do hegelianismo pela influência de Antonio Labriola. Seu sistema neo-idealista reinterpreta Hegel e dialoga com as obras de Marx; seus escritos principais: Breviário di estetica (1913), Filosofia dello spiritto (1902-1917), Cultura e vita morale (1914), alem de numerosas obras historiográficas, entre elas a Storia d’Itália de 1871 a 1915. Como político foi senador (1910); Ministro da Instrução Pública (1920-21); na grande crise nacional do início dos anos 20, que culminou na ascensão do fascismo, manteve-se vacilante; mais tarde, posicionou-se contra o regime fascista. (Cf. SCHLESENER, A. H. Hegemonia e Cultura: Gramsci. P. 30.)

4 BUKHARIN, Nikolaj Ivanovic (1888-1938); escreveu obras de divulgação do marxismo, reinterpretando-o; seu livro A teoria do materialismo histórico: Manual Popular de Sociologia Marxista (1921), é criticado por Gramsci; participou do movimento revolucionário de 1917 na Rússia e da organização do novo Estado Socialista; aliado de Stalin até 1929, quando passa a ser acusado de traidor, sendo processado e fuzilado, em 1938. (Cf. SCHLESENER, A. H. Hegemonia e Cultura: Gramsci. P. 30. )

5 GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio. Civilização Brasileira, 1978. p. 31.

6 Idem p. 32.

7 Idem. p. 13-4.

8 Idem p. 106 e 270.

9  Idem. P. 109.

10 GRAMSCI, A. A Questão Meridional. Rio. Paz e Terra, 1987.

11 Idem. In "Operários e Camponeses(I)- publicação em L’Ordine Nuovo, 02/08/1919.

12 GRAMSCI, A. "Socialismo e Cultura". Il Grido del Popolo, 29.01.1916.

13 Idem.

14 Idem.

15 GRAMSCI, A.  "Disciplina e libertá". La Cittá Futura, 11.02.1917. p.82. Tradução: Schlesener, Anita Helena..

16 GRAMSCI, A. "Socialismo e Cultura".

17 GRAMSCI, A. "Associações de cultura" Avanti! 18.12.1917.

18 GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. P.12.